segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Camus de Albuquerque Itaz, 6 de outubro de 1895

Acordo mais um dia, é o mesmo dia. Os afazeres são os mesmos, as pessoas são as mesmas, as ruas são as mesmas. Meu medo ainda é o mesmo.


Saio de casa e me dirijo ao bonde. Aquela dama de rosa está lá de novo. Não a conheço, mas a vejo praticamente todos os dias.


Ali me preparo para desempenhar meu papel novamente. Hoje terei de sorrir e satisfazer a ilusão de que está sempre tudo no seu devido lugar.


A tipografia me espera na mesa. Não é um trabalho ruim, mas sempre paga pior do que se merece. O rádio está ligado.


O ambiente é escuro, não me sinto a vontade. Trabalho como se não houvesse pergunta em minha alma que precisasse de resposta. Meu medo me acompanha.


Saio para comprar ferramentas, as minhas estão velhas e sem elas não posso continuar com meu trabalho.


Chego a loja. Sou atendido com um sorriso usual no rosto do vendedor. Peço-lhe as ferramentas que preciso e de pronto sou atendido. Ele espera apreensivo até que ponho minha mão no bolso esquerdo de meu casaco. Saco minha carteira. O vendedor angustiado me olha nos olhos, “são 25 moedas” diz ele com o mesmo sorriso no rosto. Dou-lhe o dinheiro, agradeço com um sorriso igualmente usual. Me despeço e saio.


Na rua, a mesma rua. O medo me acompanha até o ponto do bonde onde eu o espero.


Esperar é uma constante. Comuns desconhecidos hora se olham, hora sorriem uns pros outros e outros pra mim. Retribuo.


Pego o bonde até a tipografia para deixar as ferramentas. Já não quero mais trabalhar. Sempre tenho uma desculpa cabível pra coisas assim. Com a cara limpa, olho para meu patrão e minto. Não diferente dele que esboça felicidade quando vê a esposa. Ele a trai com a dona da venda na esquina anterior ao quarteirão de sua casa. Ele trai como eu.


Novamente o bonde, o mesmo bonde. O caminho até minha casa demora mais que o habitual. Será só impressão?


O hábito de chegar sempre pelo mesmo lado da rua. Primeiro o pé esquerdo, mas antes eu o limpo no tapete que se encontra na frente de minha porta. Verifico, “sim está limpo”. Entro em casa. Minha casa.


Mas é na calada da noite que me dói. Sinto agora o medo que me acompanhou o dia todo aqui, sentado ao meu lado, olhando pra mim. Ele me encara.

De agora em diante sei que não basta apenas sorrir e usar os dizeres convencionados da corte. Não há outro. Não há nada.


Olho para as estrelas como se quisesse ouvi-las cantar. Não ouço.


No fim do dia, as coisas são ainda mais tristes. Haverá um amanhã. Certamente haverá.


Demoro horas a fio até conseguir dormir. Nesse tempo penso na vida e no que deveria ter feito. Penso no medo. A vida é só e só a vida é.

Me desgasto na amargura. Sei que o tempo é pó e na mais curta brisa de inverno ele se vai.


Durmo então, depois de ter pensando e ter sorrido por um dia inteiro.


Acordo mais um dia, é o mesmo dia.

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